Casas de reza indígenas são incendiadas
A noite era de lua cheia e o silêncio na Terra Indígena Rancho Jacaré, em Laguna Carapã, no Mato Grosso do Sul, foi rompido pelo crepitar do fogo na casa de reza de Ricardo Benites, 74 anos, e sua esposa, Martina Almeida, de 72. O ritual do povo Guarani Kaiowá havia se encerrado há duas horas e a casa estava vazia. As chamas destruíram sementes e mudas de ervas e árvores frutíferas. Foi o quinto incêndio criminoso contra templos religiosos indígenas no estado este ano. Só na Rancho Jacaré ocorreram três. Os outros foram nos tekohas Avaeté, Takuapiri, Amambaí e Guapoí. A prática alcança outros estados. No fim de semana passado, o fogo destruiu uma casa de reza na Terra Itapuã, em Viamão (RS), cujo processo de demarcação dura 12 anos e está parado desde que estudos concluíram que a área é de ocupação tradicional indígena.
Os incêndios são golpe duro para os kaiowá. As casas de reza abrigam o chiru, instrumento religioso vital. Ultimamente, dezenas deles têm virado cinzas. O antropólogo Fábio Mura, professor da Universidade Federal da Paraíba, que estuda o chiru, explica que ele tem formato de cruz ou vara e é passado por gerações em séculos. O nome vem da árvore de que é feito — em português, pau-de-bálsamo.
— O chiru não é mero objeto, mas “sujeito de ação”. É um “ser vivo” — explica.
Segundo Mura, os kaiowás conversam com o chiru, que os coloca em contato com as divindades. Ele não pode tocar o chão e cada um deles tem um dom, dependendo do local onde estava plantada a árvore da qual foi feito. O chiru é usado por rezadores, casais tidos como exemplo para o grupo familiar, que é extenso. Como Ricardo e Martina.
De acordo com a tradição dos povos, o chiru afasta males e cura doenças, se usado com sabedoria. Caso contrário, pode provocar fúrias da natureza, pragas e doenças. É suporte das famílias e da própria Terra.
— Quando a nossa casa de reza foi incendiada, sentimos como se fosse um pedaço de nossa vida sendo queimada. Sofremos muito, choramos muito — diz Ricardo.
Flávio Machado, do Conselho Missionário Indigenista (Cimi), conta que os ataques a casas de reza pioraram desde 2020. Segundo ele, um ano antes, num dos casos de maior dor entre os kaiowás, cinco chirus de mais de 200 anos foram queimados em incêndio na Terra Indígena Jaguapiré, em Tacuru, na reserva de Dourados (MS).
Na íntegra: https://glo.bo/3Hg6SSM